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segunda-feira, 4 de julho de 2011

DIÁLOGO ENTRE DOIS MUNDOS

Médicos que prestam assistência ao Parque Indígena do Xingu convivem harmoniosamente com as práticas de cura tradicionais de pajés, rezadores e raizeiros. A cooperação entre os dois saberes gera melhorias evidentes na saúde dos índios


Nossa medicina, cada vez mais dependente da tecnologia e fragmentada em especialidades, vê a doença como um fato apenas biológico, que acontece em um corpo também fragmentado. Ao contrário, para muitos povos indígenas a origem da doença pode estar fora do corpo, ligada a forças invisíveis, humanas ou da natureza. Assim, as práticas de cura devem dar conta dos problemas físicos e também espirituais.


O improvável diálogo entre essas duas visões de mundo, tão diferentes, vem sendo travado há quase 50 anos no Parque Indígena do Xingu (PIX), que acaba de comemorar meio século de criação. Desde que começaram a prestar assistência à saúde dos índios do parque, em 1965, os médicos da então Escola Paulista de Medicina, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), construíram um convívio de respeito às práticas tradicionais de cura dos pajés, rezadores e raizeiros. O resultado dessa colaboração pode ser medido por bons dados de saúde que atestam o aumento da população das aldeias e o controle das doenças.

Diagnóstico e tratamento são sempre discutidos no parque indígena do xingu entre o médico e o pajé

"A receita do sucesso se baseia no respeito e na valorização da cultura centenária dos indígenas e seus sistemas de cura", observa Douglas Rodrigues, médico sanitarista e um dos responsáveis pelo Projeto Xingu, no qual se engajou ainda estudante. "Dessa convivência, ancorada na troca de saberes, acabou surgindo um diálogo entre as medicinas e os profissionais, pois havia consciência de que só seria possível interferir em determinados processos de saúde e de doença a partir do entendimento e respeito à cultura indígena."

Diagnóstico e tratamento foram sempre discutidos entre o médico e o pajé, resultando daí a flexibilização do médico - que pode, por exemplo, instalar o soro no doente em sua rede, na maloca mesmo, com uma lanterna, quando o pajé e a família se recusam a levá-lo ao posto de saúde ou hospital - ou uma alteração radical dos hábitos do pajé - que, nos casos críticos, pode acompanhar o doente até o hospital, na capital paulista. "No Hospital São Paulo se faz pajelança, quando necessário", conta Douglas.

Diálogo e negociação se mostraram importantes também no trabalho dos enfermeiros. Por exemplo, quando os pais dos recém-nascidos não apareciam para participar da pesagem das crianças, por acreditar que as crianças são muito suscetíveis a doenças espirituais até um mês de idade e não devem sair de casa, onde recebem proteção. "Daí a necessidade de nos dispormos a ouvir, não só ouvir, mas escutar e exercer nosso papel de interlocutores", observa Sofia Mendonça, médica sanitarista e mestre em antropologia, também engajada no projeto desde os tempos de estudante.

Há 46 anos médicos da Universidade de São Paulo cuidam da saúde no Parque do Xingu, respeitando as práticas da medicina indígena.


                                                     História
                           Claudio Villas Bôas e o médico Roberto Baruzzi a bordo de um DC-3 da FAB, em voo para o Parque do Xingu em 1971

O programa nasceu do idealismo dos irmãos indigenistas Orlando, Claudio e Leonardo Villas Bôas e do médico Roberto Baruzzi, da cadeira de Medicina Preventiva da Unifesp. "Quis o destino que o doutor Roberto Baruzzi, que participava de um grupo que prestava assistência médica às populações ribeirinhas do Araguaia e a comunidades indígenas da Ilha do Bananal, viesse parar no Xingu. Entusiasta como sempre, ele logo se empolgou com o parque", conta Orlando no livro Parque Indígena do Xingu: Saúde, Cultura e História, (Editora Terra Virgem, São Paulo, 2005).

Estávamos no início dos anos 1960. Villas Bôas convidou Baruzzi e seus companheiros da Unifesp para avaliar as condições de saúde da população do parque, dando a partida para o projeto - que Baruzzi coordenaria por 30 anos. O programa vem prestando assistência, ininterruptamente, a cerca de 60 aldeias de 14 etnias da região do Alto e Médio Xingu: aweti, kalapalo, kuikuro, matipu, mehinako, nahukuá, naruvotu, wauja, yawalapiti, kaiabi, ikpeng, kisêdjê, yudjá e parte da tribo tapayuna. Hoje professor titular aposentado, Baruzzi continua ativo no projeto, como consultor científico.

A doença é uma experiência subjetiva que só adquire sentido num contexto, ainda que o conhecimento médico seja universal


Nesses quase 50 anos, equipes multidisciplinares - de profissionais e de estudantes de medicina, enfermagem, odontologia, antropologia - foram enviadas ao PIX ao menos quatro vezes por ano para vacinação, atendimento e cadastramento médico dos índios, ou ainda em situações de epidemia. O Hospital São Paulo, ligado à Unifesp, assegurou a retaguarda para casos que exigiam cuidados clínicos ou cirúrgicos especializados e se tornou referência nacional em saúde indígena. Desde 1992 possui o Ambulatório do Índio, específico para o atendimento dos pacientes indígenas - cerca de 1.500, anualmente, de todo o país. Outro desdobramento foi o início, em 1990, do programa de Formação de Recursos Humanos para ministrar aos índios cursos de agente de saúde, auxiliar de enfermagem e de gestão em saúde. Hoje, 70% da equipe de 100 pessoas do projeto é composta por indígenas.

Visão indígena

No artigo "Por que aprender com índios", o jornalista Washington Novaes, autor da série de tevê Xingu - A Terra Mágica (1984), conta um fato revelador da visão indígena sobre a saúde e a doença

"Num sábado de manhã, chegou à casa onde estávamos um índio que pediu que todas as portas fossem vedadas e permanecêssemos em silêncio absoluto, como em todas as demais casas. O chefe e pajé Malakuyawá queria 'ouvir os pássaros' para saber por que uma jovem, na casa vizinha, estava em trabalho de parto havia 36 horas, mas não conseguia parir. Duas horas depois, o mesmo índio autorizou que se descerrassem as portas. Malakuyawá já soubera pelos pássaros que o 'espírito dono da mandioca', por alguma razão, estava muito insatisfeito e não deixava a jovem parir. Chamou então outros 12 pajés e foram para a Casa dos Homens, no centro da aldeia, onde passaram a fumar os charutos de ervas que os transportam ao mundo dos espíritos. Um dos pajés saiu, reuniu todas as mulheres e crianças da aldeia e foi com elas arrancar ramos de mandioca. Num só grupo, cada um agitando ramos de mandioca, começaram a ir de porta em porta, cantando em homenagem ao espírito. A certa altura, 12 pajés foram para a casa da jovem, que, na penumbra, gemia muito, ao lado do marido. De dois em dois, os pajés iam à rede e, enquanto um entoava cânticos sagrados, o outro, com a boca, chupava a barriga da índia - até que, em certo momento, tapou a boca com as mãos e correu para a mata, ao lado, onde cuspiu o que retirara. Ao final de quase quatro horas, nasceu Tilá-Tilá, hoje uma jovem sadia, mãe de cinco filhos."

Na página ao lado, vista aérea do Posto Pavuru, à beira do Rio Xingu, um dos três centros administrativos do PIX.


Família do pajé Kayabi Prepori (no centro da foto com o braço levantado), com os médicos Baruzzi, Sofia, Douglas e Marcos Pelegrino, em 1984.


                    Atualmente, 70 dos 100 membros da equipe de saúde do parque do xingu são índios

Lição de humanidade

Consciente dos limites do modelo biomédico, focado na doença e no médico, que domina a prática da nossa medicina, foi instituída no país a figura do "médico generalista" e criada uma política nacional de humanização da assistência à saúde. O objetivo é valorizar o trabalho em equipe, o diálogo entre os profissionais de saúde, a subjetividade do paciente, a relação do médico com seu paciente e sua comunidade - entre outras questões.














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